sexta-feira, 15 de abril de 2016

Crônica - Eu, o Pilha e o Uálquin

Era um daqueles dias quentes. Não tem como ficar na sinaleira muito tempo nos dias muito quentes. O asfalto queima o pé da gente. 
Daí que eu e o Pilha combinamos de ir de novo no parquinho. Mas nem tinha dado tempo de ganhar o dinheiro do dia, ainda. A mãe sempre desconfiava se eu chegava sem os oito pilas. Dizia que em vez de trabalhar eu tinha ficado brincando e eu sempre apanhava. E eu tava com fome, também. Se fosse pegar pra comer, ia ter que ficar mais tempo ainda, e eu não tava aguentando mais tanto calor.
O Pilha, acho que já tinha ganhado mais de dez pilas. Ele sempre conseguia mais que eu. E eu ainda tinha que dar a moeda dele, porque aquela era a sinaleira dele e ele deixava eu ficar lá se eu desse uma moeda por dia.
Quando eu disse que ainda não tinha oito e que tava com fome, ele disse que dava um jeito. O Pilha sempre resolvia tudo! Ele disse pra eu dar a moeda da cota dele, eu dei e ele disse: “Já volto”. E saiu correndo dali.
Em seguida ele chegou com um pedaço de esponja meio escondido na mão. Rasgou no meio, ficou com a metade e me deu o outro. “Toma, vai passar tua fome”.
“E eu vou comer esponja, Pilha? Tá doido?”
“Não é prá comer, ‘inguinorante’. Fica cheirando que passa a fome! É melhor que comida.”
Fiquei meio desconfiado, mas como ele já tava cheirando, cheirei também. Tinha um cheiro parecido com tinta, mas achei bom. “Bora”, ele falou, e saiu correndo pro parquinho. Fui atrás, com a esponja na mão.
Chegamos e fomos direto pra nossa árvore e ficamos olhando, como sempre, as crianças nos brinquedos e na caixa de areia. O Ranho tava lá, com nariz escorrendo e toda hora lambendo, e a babá sentada, olhando o celular. E tinha outras crianças perto do Ranho. E várias babás junto com as do Ranho. As crianças estavam brincando, mas as babás nem se falavam. Cada uma tava com seu celular na mão. Não sei nem pra quê ainda chamam de telefone, porque nunca vejo nenhuma falando! Ficam só cutucando nele o tempo todo, sem tirar os olhos. Melhor, então, era comprar uma TV e deixar ali no parquinho. Será que elas cutucam a TV vendo a novela?
Junto com as crianças estava um garoto pouco maior do que eu e o Pilha. Ele andava quase arrastando uma perna, ia de um lado pra outro, sem nunca virar o pescoço. Era engraçado. Ele se virava inteiro. O Pilha chamou ele de Uálquin. Disse que era por causa de um filme de DVD. O Pilha já viu muito filme, porque domingo ele vai com o irmão mais velho vender DVD pirata no centro, e tem até uma TV que o irmão coloca na banca, passando filme. Lá que ele viu esse filme Uálquin Dédi e disse que o Uálquin anda como os do filme. As crianças todas ficavam atirando pedrinhas no Uálquim e daí ele se virava pra um lado e pra outro, sempre indo atrás de quem atirado a pedrinha. Até o Ranho tava atirando as pedrinhas nesse dia.
E a babá do Uálquin? Tava lá, cutucando no celular!
Não sei o que deu no Pilha naquele dia. De repente ele desceu da árvore e foi pro lado das crianças, nos brinquedos. Eu fiquei na árvore, e até subi mais, pra olhar bem. A brincadeira parecia bem divertida, mas nunca deixavam a gente brincar. Sempre que nos viam com os garotos, alguma das cutucadoras de celular corria a gente de lá. Mas o Pilha é corajoso e foi lá brincar! 
Quando ele tava chegando, logo juntou uma pedrinha. Mas eu achei estranho, porque ele foi bem pertinho do Uálquin. ficou quase encostando nele. Daí, quando um garoto perto do Ranho atirou a pedrinha no Uálquin, o Pilha se meteu na frente e jogou a pedra de volta no garoto! Na mesma hora, esse garoto saiu correndo e chorando pro lado da babá! Claro que logo acabou a brincadeira, sem nem dar tempo do Pilha brincar direito. A babá levantou e correu o Pilha dali. E logo cada babá foi chamando a criança que cuidava e levando embora. O Pilha se mandou correndo pra nossa árvore!
“Ué, Pilha! 'Tu foi' lá acabar com a brincadeira? ‘Tu não sabe’ brincar mesmo! Entrou no time errado!” Eu disse quase rindo.
O Pilha não falou nada. Parece que nem tinha escutado eu falar. Ficou olhando o Uálquin ir embora quase arrastado pela mão da babá. 
Daí, aconteceu uma coisa que nunca acontecia: o Uálquin virou o pescoço pra trás e ficou olhando pra nossa árvore. E eu não sei direito, mas pareceu que ele sorriu.
… mas quando olhei pro Pilha tive certeza: no Pilha, era um sorriso.


Por Luís Augusto Menna Barreto

18 comentários:

  1. Que pureza vc retrata a dura realidade de meninos de rua...lindo o Pilha ajudar o diferente, aquele excluído dos tipos "normais".A tristeza da fome ser esquecida pelo uso de entorpecentes,hj vc não nos trouxe humor, nos trouxe a reflexão e a pergunta o que eu faço para ajudar meu próximo?

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  2. Retratas com pura sensibilidade uma realidade tão próxima da gente....Eu fico emocionada...De verdade...

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  3. Vc retratou de uma forma muito bacana a realidade das nossas crianças!!!!!

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  4. Linda Crônica Menna. Menino danado !!! Jonas

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  5. É! Temos muitos Uálquim e Pilhas entre nós. É um mundo diferente do nosso, que na maioria das vezes, não conseguimos alcancá-lo. As nossas salas de aula, estão cheia deles. Estão ali, diante de nós e muitas vezes, a impotência é maior do que a vontade de ajudar. Parabéns! Você soube retratar muito bem a vida desses pequenos seres!

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  6. Lindo!! E quanta leveza para essa vida difícil!

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  7. Emocionada!!! Obrigada por este texto hoje!!

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  8. Um texto atual e muito ligado aos dias de hoje em que a sociedade cada vez mais cria seus guetos com suas consequências.

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    1. Querido amigo,quanta gentileza em sua resposta. Sinto uma emoção especial ao refletir sobre o que diz ao meu respeito.Talvez o mais velho de 07 irmãos,os 40 anos como odontopediatra, 02 filhos e hj 185 crianças de 02 a 05 anos da Creche Sorena tenham me tornado no seu amigo que vc me retrata com tanto carinho. Obrigado. Sou seu fã.

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    2. Obrigado querido amigo. Quanta gentileza.Valeu.

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  9. Sou suspeito número um quanto ao largo sorriso do meu neto Joao correndo na chegada da sua escola conforme relato do pai. A esse sorriso de criança associo a um dia maravilhoso de sol, brilhante. Muito bem, quanto a história de hoje retrata a realidade de cada esquina onde pequenos, ainda crianças buscam, na mendicância, uma forma de sobreviver dela e da sua família. No conto de hoje, os meninos de rua foram numa pracinha onde outras crianças brincavam. Um episódio entre as crianças aconteceu na pracinha e, uma façanha proporcionou uma troca de sorrisos, foi a grande conquista de Ualquin e o Pilha, o menino de rua. Enquanto isso, as Babás que acompanhavam as crianças na pracinha estavam imersas na solidão do seu celular. Não viram o brilho do sorriso dessas crianças.

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  10. Triste. Muito triste.
    "Mas pra fazer [literatura] com beleza
    É preciso um bocado de tristeza
    É preciso um bocado de tristeza
    Senão não se faz [literatura], não. "

    Obrigada pelo empréstimo, Vinicius de Morais!

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  11. Um sorriso vale mais do que mil palavras!! E quem consegue fazer o outro sorrir, transmite algo grandioso, pois dentro de si tem um coração bondoso que quer espalhar alegria e amor, aí pude ver os dois sentimentos, e que deveríamos multiplicar todos os dias, se todos nós nos proporcionarmos a oferecer momentos simples e enriquecedoras como esses, teremos um mundo melhor!!! Na simplicidade estão os grandes momentos!! E que momento lindo você relatou e nos fez refletir!!! Parabéns por sua bela escrita!!

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    1. Sou sua fã...!!! Parabéns pela grande pessoa e pelo profissional que é!! Admiro sua escrita e seu intelecto!!! Apoio à campanha #L.A.mennabarreto, o grande escritor que emociona!!

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  12. O texto transmite uma carga emocional tão intensa que dá pra sentir ao ler. Lágrima > Sorriso > Esperança.

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  13. Kkkkkkk rindo demais. Tenho a impressao que estou vendo filme brasileiro, tudo muito real, a tela é como se não existesse e nós estivemos olhando a cena neste exato momento. Indico demais seu blog. Parabéns. "Não é para comer, sr.inguinorante". 😁. Não deixe de nós trazer essa alegria de ler e se apaixonar pela leitura. Saudades. 👏🙏🏻

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  14. Na singeleza do gesto de Pilha, encontramos a semente que mostra que todos nós possuímos a bondade e o companheirismo... Se enxergar na falha do outro (mesmo que em mim não seja fisicamente visível) é uma forma de nos assemelharmos e nos fazermos irmãos num mundo tão cheio de diferenças e afastamentos...

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